O primeiro trimestre foi marcado pela publicação de mais um guia orientativo da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), dessa vez voltado para a utilização do legítimo interesse pelo controlador como justificativa do tratamento de dados.
Desde a publicação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o órgão vem elaborando documentos com indicações e esclarecimentos úteis para interpretar a lei, implementar programas de conformidade e resolver incidentes de segurança da informação.
Agora foi a vez do legítimo interesse, uma das bases legais previstas na LGPD para que dados pessoais possam ser tratados.
Especificamente para atuações empresariais, essa hipótese autorizativa de tratamento de dados pessoais pode ser de grande valia caso não haja outras bases legais ou, ainda, para os casos em que seja necessário deixar claro que aquele tratamento específico é de fundamental relevância para a existência da sociedade empresária e para a continuidade de seu modelo de negócio.
O guia orientativo deixa claro que o legítimo interesse deve ser utilizado com cautela.
Em primeiro lugar, porque ele não serve de justificativa para tratamento de dados sensíveis, uma vez que esse tipo de dado pessoal, quando em um contexto de incidente de segurança da informação, gera maior risco de discriminação do indivíduo. Como exemplos de dados pessoais sensíveis, pode-se citar a origem racial ou étnica, a religião, os dados biométricos e relacionados à saúde.
Em segundo lugar, pois ele estabelece responsabilidades ainda maiores do controlador dos dados pessoais, quando os dados se referirem a crianças e a adolescentes. Isso ocorre a partir da premissa do Estatuto da Criança e do Adolescente de que, devido ao fato de ser um grupo de indivíduos vulneráveis em decorrência da imaturidade, seus direitos devem ser preservados sob o prisma de seu melhor interesse. Qualquer finalidade do tratamento dos dados pessoais, nesse caso, deve passar pelo crivo da preservação máxima dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Especificamente quanto a esse tema, o guia da ANPD não instituiu parâmetros específicos quando do tratamento dos dados pessoais de crianças e adolescentes, por meio da justificativa do legítimo interesse. Não seria factível fazê-lo, dado que é uma análise extremamente atrelada à condição fática e que deve considerar, e documentar, todas as possibilidades de fluxos existentes.
Sob esse contexto, a orientação do próprio órgão é que seja feito um balanceamento para averiguar se o legítimo interesse seria cabível em determinada situação. Esse foi, aliás, o caminho tomado pela ICO, do Reino Unido, ao primeiro desenvolver parâmetros para o legitimo interesse[1]. O cerne da questão é entender se o titular estaria ciente quanto à possibilidade de coleta e demais tratamentos de seus dados sob essa justificativa e se isso não infringiria seus direitos fundamentais.
Essa ponderação deve ser feita em um procedimento dividido em etapas, que sintetizamos a seguir:
- Finalidade: deve ser analisado o objetivo do tratamento dos dados pessoais e se esses podem ocorrer com base no legítimo interesse, conforme os parâmetros supramencionados;
- Necessidade: é preciso que o legítimo interesse seja, de fato, a base necessária para o tratamento, que deve ocorrer apenas dos dados pessoais estritamente essenciais para o objetivo almejado. O ideal é que seja devidamente documentado e com as respectivas justificativas e demonstrações que se façam necessárias; e
- Balanceamento e salvaguardas: fase em que a ponderação, de fato, será realizada. Devem ser aferidos os interesses do controlador em relação ao tratamento em contraposição aos direitos e liberdades fundamentais do titular dos dados pessoais. Em hipótese alguma os interesses da empresa, por exemplo, poderão se sobrepor aos direitos dos indivíduos. Nessa etapa, também, serão elencadas salvaguardas necessárias para manutenção do equilíbrio e para evitar riscos relacionados a incidentes de segurança.
Sendo assim, para que o legítimo interesse possa ser utilizado como base legal para o tratamento de dados pessoais, é preciso que análises minuciosas sejam realizadas com o objetivo de manter o equilíbrio que se mostrou o cerne de sua utilização. Diversos parâmetros devem ser minuciosamente pensados e utilizados para que os titulares dos dados não corram riscos desnecessários e para que a empresa possa utilizar de seu legítimo interesse sem que ocorram intercorrências, e eventuais sanções.
Nosso escritório conta com equipe especializada em proteção de dados pessoais e privacidade e está à disposição para oferecer o suporte necessário para análise das condições do tratamento de dados realizado e adequação deste à orientação da ANPD.
Pedro Soares, sócio de SMP Advogados
Gabriela Lopes, associada de SMP Advogados
[1] Confira https://ico.org.uk/for-organisations/uk-gdpr-guidance-and-resources/the-research-provisions/principles-and-grounds-for-processing/ (acesso em 2/4/2024).
